quinta-feira, 30 de junho de 2011

“Ossos do ofício”

Uma expressão normalmente associada a dificuldades que resultam da profissão, com uma conotação negativa.
No entanto, e apesar de a nossa profissão fazer jus ao significado, hoje apetece-me falar de “ossos bons do ofício”, os que nos proporcionam coisas boas, que nos fazem viver momentos de sorrisos inesperados, assistir a espetáculos únicos, conhecer pessoas raras ou simplesmente ter boas conversas.
Nunca houve nenhuma pessoa em especial que quisesse entrevistar, uma figura das televisões ou jornais que quisesse muito conhecer, um nome sonante, um ídolo, uma referência.
Há anónimos mais interessantes, pessoas desconhecidas que valem a pena só pela troca de duas palavras. Tive a oportunidade de conhecer uma dessas pessoas.

Proprietária de uma das mais antigas livrarias em Cascais, uma senhora de 60 anos, elegante, sem acessórios ou maquilhagem, com a beleza sóbria e simples dos intelectuais.
Simpática e acolhedora, recebeu-me cheia de sorrisos e elogios. Quase que fiquei à vontade e esqueci-me para o que ia: falar de literatura, um tema tão exigente, que não me deixa confortável e que serve a muito poucos.
A sua linguagem elaborada inata, os gestos lentos, o olhar atento, uma inteligência que se percebeu na primeira palavra, deixaram-me nervosa. Aquela não era uma simples vendedora de livros, daquelas que impinge o que quer que seja, de preferência o mais caro e que fala do assunto por circunstância.
Considerava-se ela própria um “aspirador de livros”. Dava para perceber. Cada resposta às minhas perguntas tinha de ter o exemplo lido num livro, o título de alguma obra, antiga ou recente, de um autor conhecido ou nem tanto.
À medida que a entrevista avançava, o entusiasmo a falar de livros era maior. O dela, não o meu, que poucos conhecimentos tenho nesta matéria para fazer surgir uma discussão e tornar a pergunta-resposta numa conversa aprazível entre entendidos.
Considerava falar da importância dos livros para os jovens hoje em dia um “tema leviano”, nomear um livro preferido “impossível”, opinar sobre a literatura chamada light uma “ofensa”.
Respostas diretas, cruas, desmedidas, que me deixavam atrapalhada e a sentir-me uma incompetente. Cada vez que eu falava ela lançava-me um olhar reprovador. Nada do que eu perguntava servia, portanto, deixei-a falar.
Normalmente tenho a preocupação de fazer entrevistas curtas, principalmente se estou a filmar, mas ali, com ela e os milhares de livros que nos rodeavam, não quis saber do tempo.
Tirei o som dos telemóveis, pousei o microfone na mesa, encostei-me confortavelmente na cadeira e ali fiquei a ouvi-la durante cerca de uma hora.
Falou-me das pequenas coisas, aquelas que não nos ocorre pensar no dia a dia. A falta de tempo, uma desculpa “absurda” frequentemente utilizada de quem não lê.
A sociedade ignorante em que vivemos, onde é mais importante ir ao shopping do que a uma biblioteca, onde 40 euros por uns sapatos é barato, mas 20 euros por um livro é um exagero.
Ouvia-a atentamente, ficava a pensar no que me estava a dizer, acenava com a cabeça afirmativamente como quem diz “é verdade/tem razão/nunca tinha pensado nisso”.
No final, mostrou-me toda a livraria, os amontoados de livros escondidos na cave, apresentou-me as filhas, ofereceu-me um livro de José Saramago, com menos de 50 páginas, e fez-me prometer que lhe ligava depois de o ler. Assim fiz. Liguei-lhe a agradecer, não pelo livro, mas pela lição.

3 comentários:

  1. Às vezes estes "anónimos" têm as melhores histórias!

    ResponderEliminar
  2. Também já tive o prazer de aprender com estes "ilustres anónimos" :)

    ResponderEliminar
  3. E é tão bom aprender e tirar partido de coisas que já mais julgávamos possiveis, ou que nas quais, simplesmente nunca tinhamos pensado... Para mim, estes são sem dúvida dos melhores momentos.

    ResponderEliminar